quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

RELATOS REAIS 6 - A SOLIDARIEDADE VENCE A MORTE NO ASSÉDIO MORAL



O grupo Assédio Moral Denúncia está atento, tem acompanhado alguns casos que têm chegado por e-mail, mas essencialmente por via telefónica, muitas vezes de números privados, com relatos muito dramáticos relativamente a situações deste foro.

Recordo-me de um caso de assédio ascendente, com um elevadíssimo grau de violência, em que a vítima era a chefia, directora de uma IPSS, há mais de quinze anos. No local trabalhavam cerca de 20 pessoas.

Todos os dias era brindada com “presentes”, rasgões nos pneus do carro, riscos e mossas, furto de bens pessoais, nomeadamente os documentos individuais de identificação, cola na cadeira, ramos de flores murchas com mensagem que tinha vindo de um cemitério, da cova ao lado daquela onde ela iria ficar, fezes de animais em cima da secretária, sacos de lixo de artigos de higiene despejados no gabinete, envio de caixões em miniatura para a sua casa com o seu nome gravado, para além de constantes telefonemas e bilhetes anónimos a instarem-na para se despedir caso contrário a morte seria o caminho.

Para esta pessoa, que era uma mulher de 52 anos, com formação superior, e sem quaisquer laços familiares em Lisboa, a empresa era a sua vida, 24 horas por dia, por isso o caminho era um só, acabar como o sofrimento.

Foi alvo de uma acção em tribunal instaurada pelas colaboradoras, apesar de todas as provas perdeu a acção ficando obrigada a pagar uma elevada indemnização.

A pouco e pouco começou a perder a capacidade de memorização, aí entendeu que estava a ficar senil, em simultâneo, chegou a altura da menopausa e todas as transformações que isso acarreta no organismo feminino.

Não tinha vontade nem tempo para ir ao médico, as tarefas que outrora realizava num ápice agora, por falta de capacidade de concentração, pareciam nunca mais terem fim.

Perdeu radicalmente a vontade de aceder aos grandes prazeres da sua vida, a música e a leitura.

Deixou de frequentar a vida social, a sua aparência mudou significativamente, aumentou mais de 30 kg e o seu cabelo começou a ficar todo branco, as rugas começaram a crivar-lhe a face.

Este era o fim da linha já tudo estava perdido, nada mais havia a fazer.

Esta senhora procurou-nos, timidamente e a medo.

Falámos com ela, da primeira vez ainda nos encontrámos num café, disse-nos apenas o primeiro nome Ângela relatou-nos alguns ataques e não quis referenciar a instituição que geria.

Apesar de lhe tentarmos injectar outras perspectivas de vida, ficámos com a sensação que aquele seria dos últimos momentos do final do seu tempo.

Nos dias que se seguiram tentámos ligar-lhe uma série de vezes, o telemóvel tocava mas ninguém atendia.

Percebemos ao fim do quinto dia, que provavelmente estaria viva, senão o telemóvel já estaria desligado. Aqui renasceu a esperança, enviamos uma mensagem a dizer simplesmente “Olá estamos aqui para si”.

Passadas mais de 3 horas, recebíamos um telefonema, do outro lado, uma voz em total pranto.

A noite já ia longa e o único lugar onde poderíamos conversar, de forma mais segura, era nas Bombas da Galp da A5.

Já estava de baixa, ainda se sentia mais inútil, com a total certeza de que já teria sido substituída, até porque os últimos momentos em que esteve na empresa foram dramáticos, ela excedeu-se, não se conseguiu controlar e desta vez por uma coisinha insignificante.

Não sabemos como é que ela conseguiu conduzir naquele estado tão profundo de pranto e depressão. Recusava-se a tomar a medicação, porque ao toma-la estava a admitir a sua insanidade.

Perante a constante insistência de que iria atentar contra a vida, propusemos-lhe uma visita, nesse mesmo momento, ao Hospital S. Francisco de Xavier, indo no nosso carro e deixando o dela ali mesmo, recusou liminarmente.

A fim de algumas horas conseguimos finalmente atingir o nosso objectivo. Apesar da Ângela dizer que queria ir no seu carro, apavorados anuímos e seguimos atrás dela. O carro ziguezagueava na auto-estrada em grande velocidade, mas finalmente chegámos ao destino.

Nesse dia, tivemos sorte, estava lá mesmo naquela altura, a equipa de urgência psiquiátrica. Como ela não queria falar, por medo e vergonha, tomámos as rédeas do assunto.

Para o bem ou para o mal o fim da linha era ali mesmo.

A Ângela esteve internada durante longas semanas, sempre acarinhada por nós, mesmo quando dormia.

Findo todo este processo de reestruturação física e mental partimos para outra etapa, não menos difícil, convencer a Ângela que o emprego fixo tinha de deixar de existir.

Durante este tempo, que foi muito curto, encaminhámo-la para um psiquiatra que tem acompanhado algumas pessoas nestas condições, para além da equipa de psiquiatria do hospital e da advogada, a quem entregámos um relatório elaborado por nós mas com o “agreement” da Ângela.

Aqui já estávamos a trabalhar em equipa o grupo Assédio Moral Denúncia, o psiquiatra e o advogado, é claro que tudo foi muito mais fácil para nós e para a “nossa vítima”.

A Ângela tinha dinheiro junto que lhe permitia levar uma vida confortável, o problema dela era mesmo a ocupação e o “amor à camisola”, também tinha familiares e uma casa perto do Mundão, na Zona de Viseu.

Acabou com o contrato de trabalho, o fio condutor para a morte certa, aquele que a ligava na esta situação de terrível escravatura moral e deslocalizou a sua vida.

Assistimos à sua partida, com os olhos rasos de lágrimas mas, com muita esperança naquela mala do carro. O medo do desconhecido e da indefinição do futuro tolhia-lhe a alma, mas a percepção de que tinha adquirido a condição de guerreira dos seus propósitos levou-a a dar à ignição e arrancar com o carro. Passadas escassas duas horas, ligou-nos a dizer que tinha chegado bem e que iria arrumar, de imediato, toda uma vida que levava nas malas que tinha colocado no carro.

Ouvia-se a voz da esperança a ecoar lá para os lados de Viseu.

Sabemos, porque de vez em quando nos telefona, que está bem, voltou a ouvir música e a criar o gosto pela leitura, mas que ainda não arranjou colocação profissional e que ainda tem muito receio de passar por outra situação idêntica, nem sabe quando vai conseguir ultrapassar o trauma.

Este foi um caso com muita história e que nos fez abalar muito, psicologicamente.

Nunca nos tinha passado nada de igual (dos subordinados para a chefia), nem nunca tínhamos imaginado tanta maldade.

Chegámos a questionar a nossa capacidade para ajudar o próximo, porque esta era uma situação verdadeiramente danosa quer para a Ângela, quer para nós. O sucesso brindou o nosso esforço e isso é muito reconfortante, sentimos que se tinha conseguido uma réstia de justiça.

A Ângela nunca conseguiu escrever uma palavra sobre o caso, nem nunca quis expor a sua situação publicamente em televisão.

Teria sido importante por configurar um caso “sui generis”, mas respeitamos a sua decisão e por isso fizemos nós o relato.

A ângela começa çentamente a despertar para a necessidade de divulgar este caso e autorizou que fizessemos, este relato para um livro.

Estes casos não acabam quando se extingue a raiz do problema para a vítima.

Para nós, a menos que exista uma solicitação de afastamento a pedido da vítima, vamos mantendo o contacto, e oferecendo a nossa mão amiga, nem que seja à distancia , hoje quando falámos com a Ângela ela propôs-nos a publicação do caso no blog.

Obrigada Ângela por nos teres ajudado a crescer com esta experiência e por  teres decidido a continuar a colorir o nosso mundo com a tua vida.

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