quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Quando se invertem os papeis dos cuidadores






Habituados a que os pais olhem por nós, sempre durante a sua vida somos confrontados repentinamente com uma realidade inversa.
É chegado o tempo de passarmos a cuidar dos pais como se fossem nossos filhos.
A vida prepara-nos para educar e cuidar dos nossos filhos mas não nos ajuda a encarar a realidade da velhice e deterioração física e muitas vezes moral dos nossos pais.
Falo-vos de uma realidade que conheço com três idosos na família, torna-se complicado pensar como é que vai ser o futuro.

As idades são muito avançadas, apesar das co morbidades próprias da idade 89, 90 e 95 anos, temos apenas um com dificuldades de locomoção.
A minha mãe com os seus 95 anos gira pela casa como se as suas pernas não a traíssem de vez em quando, só sai se formos com ela porque deu duas quedas violentas e tomamos a decisão de que seria assim.
Vive com as duas filhas, a nossa casa é grande, tornou-se uma casa plurifamiliar, onde cada um tem a sua independência, o que facilita a convivência diária da mãe com as filhas. Ainda assim são diversas as vezes durante o dia que faz “chamadas de atenção”.
Passa grande parte dos seus dias a tricotar casaquinhos de malha para oferecer no Natal à Ajuda de Berço, cozinha, encomenda do gás, faz tarefas de casa e todos os dias cuida do correio.  Vê-se que tem medo de parar…
Passa dos dias a subir e descer escadas do primeiro andar à cave para falar connosco,”por dá cá aquela palha”, está lúcida, mas a cada dia que passa se nota uma maior dificuldade em andar, usar bengala é que nem pensar.
O meu sogro sempre foi um homem muito vivo, fazia tudo com grande determinação.
Foi muito difícil convencê-lo a deixar de conduzir, até há 3 anos atrás ainda fazia viagens de Lisboa à Guarda ou de Lisboa ao Alentejo, o que nos deixava o coração muito apertado porque, nessa altura, a sua condição de mobilidade já era diminuta. 
Desde que deixou de conduzir tem vindo a ficar cada vez mais condicionado fisicamente.
Doí-me o coração de o ver assim, gosto dele como se fosse um pai.
O meu marido tem sido um filho exemplar, assim como os meus cunhados. No inicio estava em fase de negação, embora pouco consciente, nem queria pensar que o pai estava assim, depois percebeu que era chegada a hora de agir. Vejo nos seus olhos uma melancolia sem fim quando relata os bons momentos do passado.
A minha sogra com os seus quase 89 anos e alguns problemas de saúde, pouco simples, mas faz tudo, tem sido uma esposa exemplar, mas já se lhe nota muito cansaço.
Os nossos casos não são os piores, apesar de termos 3 idosos, de pensarmos diariamente na melhor forma de sermos pais dos nossos pais a nossa vida não é assim tão complicada.
Depois também somos vários cuidadores entre irmãos e cunhados somos muitos dos dois lados da família.

É óbvio que as “chamadas de atenção” são maiores e mais assíduas, porque os idosos, fazem sempre questão, por muita atenção que tenham, de nos dizer que existem e que ainda são nossos pais, muitas vezes teimam em ter razão e criar algumas situações de “liderança”.
A dor maior é assistir diariamente a situações que não estamos preparados e estarmos sempre em relativo sobressalto no que concerne à sua saúde e á forma de lhes conseguirmos dar maior conforto.
Se dantes recordávamos os braços que nos embalaram, os momentos de colo, as histórias e brincadeiras que faziam connosco, agora vemos os seus braços e pernas frágeis, que muitas vezes temos de amparar, com gosto, mas com tristeza também.
Agora é chegada a hora de mudar alguns hábitos alimentares, de cortar a comida em pedaços, passar os alimentos, assim como nos fizeram a nós, de alterar os quartos para ficarem com mais acesso, mais segurança, de implementar cadeiras e barras nas banheiras, de tirar tapetes de chão, de afastar móveis, enfim tudo o que não gere obstáculos nem possa causar situações de queda ou de perigo.
Começamos a sentir que o tempo voa para nós, mas cada vez sentimos mais que o tempo voa duas vezes mais depressa para eles. Muitas vezes perdem a noção do dia, das horas, das datas especiais.
Os pais acompanham-nos, apoiam-nos, orientam o nosso crescimento, dão-nos carinho, muito amor, os filhos retribuem, mas, quando os anos avançam, sentem muito quando se têm de tornar pais dos próprios pais. É uma inversão de papeis de cuidados para cuidadores, normalmente passamos mais de meio século a ser cuidados e repentinamente o nosso mundo vira-se de pernas para o ar. É difícil, nessa altura, sermos nós a definir a forma como se vai desenrolar a vida dos nossos pais. Para nós é fácil cuidar dos filhos, do seu principio de vida, das brincadeiras, da escola, da higiene, do medo, do sucesso, dos sonhos, porque já passámos por tudo isso com a ajuda dos nossos pais, mas, nunca nos vimos no papel de cuidadores de idosos.
A mim, pessoalmente, invade-me uma tristeza imensa quando penso no fim da linha, já o senti quando foi da morte do meu pai, não nos falávamos e foi de forma bruta que soube quase dois meses depois. Essa mágoa levo-a para sempre porque a bem ou a mal, fui metida no meio de um divórcio, as relações deterioraram-se e com muito desgosto meu o meu pai nem me foi levar ao altar. Há coisas que os filhos não têm culpa. Foi uma das marcas profundas que o divórcio dos meus pais me deixou, apesar de tudo gostava mesmo dele. Do meu pai recebi muito bons princípios que têm regido a minha conduta de vida. Herdei do meu pai uma marca pessoal que me acompanha desde a juventude, o gosto da escrita com caneta de tinta permanente.
Devemos resolver os conflitos antes da morte, a tempo de podermos ser bons filhos e bons pais.

Antever o fim de linha de vida é terrível, fico muito triste quando penso na ausência para sempre, mas o que me angustia diariamente é ver, dia a dia, o declínio dos nossos heróis. A bem ou a mal acaba por pairar nos nossos pensamentos a nossa própria finitude.
Nós não nos podemos queixar, até agora já conseguimos ter a sua companhia por muitos anos, mas que viessem muitos, muitos mais, é um amor infindável e que nos faz sempre falta, estejam como estiverem serão sempre o nosso porto seguro, aqueles a quem podemos contar tudo, mesmo tudo, os que tatuam eternamente  com amor o nosso coração.
Há muitas fórmulas para se lidar com a velhice dos nossos queridos pais, para mim a receita é básica, dar-lhes espaço, estarmos atentos acompanhando amorosamente esta fase das suas vidas, pensando no seu conforto e vivendo a vida lado a lado.

O melhor lar dos nossos pais é e será sempre a sua casa, desde que, obviamente, tenham condições de saúde e segurança para lá permanecerem.
Esta é a nossa realidade, mas não estou alheia a que existem outras realidades diferentes da nossa, homens e mulheres que foram apenas progenitores e nunca souberam ou quiseram ser pais de verdade, aqui é muito difícil para os filhos serem pais daqueles que nunca foram seus pais, é difícil devolver o amor que nunca se recebeu, o saldo emocional é francamente negativo.
A idade avançada é profícua em gerar angustias, ansiedades, egos alterados e exigências, temos de estar preparados para limar todas estas arestas de forma airosa, sem nos magoarmos, definindo uma estratégia de atuação que deve ser única quando há diferentes cuidadores.
Dessa estratégia fazem parte alguns princípios que não desconhecemos porque já vimos os nossos pais gerirem connosco quando crianças. Lembram-se da paciência que tinham, contando-nos histórias, ouvindo as nossas conversas, é assim que devemos agir, ouvindo o que nos têm para dizer, lendo quando eles não podem, conversando com eles, gerindo com parcimónia o ínfimo tempo que demoram nas mais diversas tarefas, por exemplo a vestir, apertar botões, ou dar um laço nos atacadores, ou a ouvir a rádio ou a televisão aos gritos. Com um pouco de criatividade e humor arranjamos sempre forma de contornar as situações eliminando os momentos da raiva que capeiam a nossa tristeza por estarmos a assistir a um filme para o qual não queríamos comprar bilhete. Gerir as emoções é uma tarefa árdua que a vida nos vai ensinando a fazer. A morte é só uma dura ausência, mas para mim não é o fim, acho que depois nos voltamos a encontrar todos.
O nosso karma como filhos é darmos aos nossos pais muito melhor do que recebemos e essa é uma das maravilhas que a vida nos pode proporcionar e que devemos aproveitar.


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